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Dança Meu Anjo
Virginie T.


Romance paranormal entre um humano em perigo e um anjo. Caitlyn tem sido a cabeça de cartaz do Teatro de Ballet Americano de Nova York por muitos anos. Solitária e retraída, a sua vida gira em torno da dança e a sua maior fã é a sua avó. Quando alguém a começa a assediar, tudo muda. Quem pode ser e com que propósito? A sua avó tudo fará para a proteger, incluindo colocá-la no caminho para o seu misterioso vizinho Baraqiel.





Virginie T.

Dança meu Anjo








Caitlyn tem sido a cabeça de cartaz do Teatro de Ballet Americano de Nova York por muitos anos. Solitária e retraída, a sua vida gira em torno da dança e a sua maior fã é a sua avó. Quando alguém a começa a assediar, tudo muda. Quem pode ser e com que propósito? A sua avó tudo fará para a proteger, incluindo colocá-la no caminho para o seu misterioso vizinho Baraqiel.



Dança meu anjo


© 2020 – Virginie T



Anjos CaГ­dos




Volume 1




Virginie T




Traduzido por Luis Navega


В© 2020. T. Virgine




CapГ­tulo 1



Caitlyn

Desde que estou a dançar, não devia estar tão stressada. Afinal, os ensaios seguem sempre o mesmo caminho e eu já tenho o papel principal, tal como nas cinco vezes anteriores. Não me chamam a estrela em ascensão do Teatro de Ballet Americano por nada e estou longe de roubar o meu lugar. Eu lutei e sacrifiquei-me muito para chegar aqui. A dança é parte integrante da minha vida, do meu ser, e não há como eu deixar que os últimos acontecimentos me impeçam de ser eu. Fecho os olhos, limpo a minha cabeça e lembro-me dos passos cruciais que me conduziram a este momento.

Vim para Nova Iorque nos meus primeiros anos, graças ao meu professor de dança na altura e à sua constante insistência nos meus pais. Nunca lhe poderei agradecer o suficiente pelo futuro que ele me permitiu ter. Ainda me lembro do assédio que ele fez passar aos meus pais. Mason Jaz é uma pessoa muito determinada, para dizer o mínimo, e o meu sucesso foi muito importante para ele. Comecei o ballet, como muitas meninas, aos quatro anos de idade, empurrada pela minha mãe que esperava canalizar o meu excesso de energia enquanto me permitia abrir ao mundo e às pessoas à minha volta. Desde a altura de 1 metro, eu era uma criança muito retraída em busca de uma saída para o turbilhão de emoções que estavam latentes dentro de mim e que eu não entendia. Tudo era uma fonte de conflito interior e stress, até ao ataque de pânico. Por isso, fiz a escolha desde cedo para manter o meu discurso no mínimo e ficar longe da interacção social. Um médico tinha-me diagnosticado uma forma de autismo, suficientemente leve para me permitir ter uma vida bastante normal e capacidades intelectuais médias, mas suficientemente desenvolvida para fazer das relações humanas um problema real para mim. Na época, não significava nada para a criança que eu era, excepto que eu era diferente das outras crianças, e eu não precisava deste cavalheiro de casaco branco para me dizer isso. A minha mãe tinha pensado que a dança podia ser uma cura para os meus males, uma forma de expressar o que eu tinha no meu corpo e no meu coração. Se ela soubesse na altura até onde nos levaria, poderia ter pensado duas vezes sobre isso. Mason viu muito rapidamente o meu potencial e de um simples hobby, esta actividade tornou-se a minha paixão, devorando, invadindo e mudando a vida de toda a família e a sua visão do futuro.

A dança tinha sido de facto uma verdadeira cura milagrosa. Através dela, eu expressei tudo o que sentia dentro de mim: raiva, inveja, amor. Comecei a competir em concursos de dança com apenas seis anos de idade, impressionando os júris com a minha maturidade e ganhando prémios todas as vezes, os meus pais de boa vontade levam-me de cidade em cidade viajando por toda a Florida. Os meus pais, nessa altura, deram-me tudo para não impedir o meu progresso, pondo de lado os seus próprios desejos e necessidades.

Nada mais existia além da dança, no final exactamente o oposto do que os meus pais queriam, que queriam abrir-me ao mundo. O meu horário escolar ficou sobrecarregado entre as aulas clássicas da escola que eu tinha de fazer por obrigação e as 10 horas de dança por semana, mas nunca foi suficiente para mim. Mesmo assim, eu já estava a viver para isso. O meu pai trabalhou inúmeras horas extras para pagar as minhas aulas e o orçamento familiar era apertado, apesar de Mason não nos obrigar a pagar por tudo. Os meus pais tiveram de desistir do desejo de um segundo filho por falta de tempo e de meios. Quando eu tinha oito anos, era óbvio para todos que as coisas não podiam continuar assim para sempre. O problema era que a dança tinha-se tornado a minha droga e eu não podia passar sem ela. As semanas de férias ainda foram uma tortura sensorial apesar do meu treino solitário, e o regresso às aulas de dança foi um verdadeiro alívio, a lufada de ar fresco que eu precisava para sobreviver. Então a minha professora discutiu com os meus pais a ideia de me mandar para Nova Iorque, para a escola de ballet americano, o paraíso na terra aos meus olhos. A sua recusa categórica e imediata foi uma facada no meu pequeno coração.

Eles negaram-me o direito de ser normal, de ser eu. Olhando para trГЎs, eu percebi todos os sacrifГ­cios que eles fizeram para que eu pudesse realizar o meu sonho, mas na Г©poca, eu era muito jovem para entender e eu os culpei. Eu culpei-os tanto.

– Por favor, manda-me para aquela escola especial. O Mason disse que seria perfeito para mim.

– Isso não é possível, Caitlyn. Temos um emprego, amigos, casa, e não há possibilidade de tu ires sozinha a milhares de quilómetros.

Mas eu estou sempre sozinha de qualquer maneira, então qual é a diferença????

Eu tinha saГ­do sob o olhar ferido deles para me refugiar no meu confidente e na minha fГЈ nГєmero um, a minha avГі, que vivia a apenas alguns quarteirГµes de distГўncia.

– Avó, eles não me vão deixar realizar o meu sonho. Eles preferem que eu acabe como empregada de mesa, mas eu nasci para dançar. Tu sabes disso. Eu posso contar tudo com os passos. Preciso deles para me sentir bem. Porque é que eles não compreendem isso?

– Oh, minha gata Caitlyn, acalma-te. Vem dar um abraço à avó.

Abraçada nos seus braços, a ouvir a sua lenta e constante respiração, os meus tormentos estavam sempre a abrandar. Ela ainda tem aquele cheiro de rosa que sobe à sua cabeça e aquela voz calma de uma longa experiência de vida. Ela sempre foi a única com quem eu me sinto como todos os outros. Ela compreende-me mesmo quando eu não faço barulho. Ela nunca me considerou como uma pessoa estranha, tal como a sua amada menina a quem ela carinhosamente chama de Caitlyn Cat.

– Vai dar tudo certo a seu tempo, gatinha.

–Sim, vai dar. Tu vais ver.

Eu nГЈo acreditei nela, mas nГЈo disse nada porque ela era, e ainda Г©, a pessoa que eu nГЈo queria desapontar em nenhuma circunstГўncia.

AlГ©m disso, a minha avГі estava certa.

Demorou dois anos. Dois longos anos de luta entre meus pais teimosos e o meu professor perseverante, dois anos de frustração e ir e voltar para a avó para me acalmar, mas acabamos por sair da Flórida. Os meus pais foram transferidos para Nova Iorque para poderem seguir-me nesta aventura, encontrando-me demasiado jovem para estar longe da minha família. Aquele dia foi um verdadeiro quebra-corações. Na minha ânsia de ir para uma escola especial que correspondesse às minhas expectativas, não percebi que deixar este lugar ensolarado significava estar longe da minha avó. Foi uma dor imensurável, mal aliviada pela promessa que ela me fez.

– Virei ver-te regularmente e nunca perderei as tuas estreias. Eu prometo-te, Caitlyn Cat. E tu, promete-me que vais dar tudo o que tens para chegar ao topo. Transforma o teu sonho em realidade e mostra ao mundo quem é a verdadeira Caitlyn.

– Vou ter saudades tuas, avó.

Como chorei no carro que me levou ao meu destino, incapaz de dizer uma única palavra de agradecimento aos meus pais que deixaram tudo por mim: a sua família, os seus amigos, a sua casa. Até hoje, a lembrança do meu adeus com a minha avó ainda me dá um toque no coração e um sorriso ao mesmo tempo. Porque ela cumpriu a promessa dela, e eu cumpri a minha.

Para muitos, entrar na escola de ballet americano é um mito, algo que se espera, algo com que se sonha, mas nunca se alcança, reservados para a elite e para os poucos privilegiados com uma vida excepcional. Felizmente para mim, Mason tinha-me preparado bem e isso acabou por ser apenas uma formalidade. Com apenas 10 anos de idade, deslumbrei o maior pela minha actuação e pelas emoções que transmito através dos meus passos. Segui estacas, arabescos e saltos de gatos sem um único passo em falso e obtive uma bolsa de estudos completa para participar nas aulas na semana seguinte com as adolescentes. Mais uma lacuna em comparação com as outras. A diferença de idade significava que não tínhamos a mesma vida e os mesmos objectivos apesar de uma paixão comum, continuando a manter-me isolada. Miúdas de quinze anos de idade floresceram nos seus corpos em gestação e procuraram os olhos dos rapazes, enquanto eu passava os meus dias em frente ao espelho com o único objectivo de alcançar a perfeição na minha prática. Isso não mudou muito desde então, pois o ciúme pelo meu progresso manteve o fenómeno vivo. Na verdade, a minha adolescência tem pouco em comum com os outros. Eu flirtei um pouco, mais para fazer como os outros do que por desejo real, e isso não tem sido um grande sucesso. Havia uma barreira invisível entre estes jovens rapazes à procura de experiência e eu: uma total falta de compreensão. Eu nunca entendi o que eles queriam de mim, e vice-versa. Por outro lado, eu mesmo não sabia o que esperava deles. Para ser menos solitário, sem dúvida. A experiência não foi desagradável, apenas, não senti nenhuma ligação particular com os meus namorados e considerando a facilidade com que me deixaram, acho que foi mútuo. Foi, portanto, inconclusivo e eu finalmente optei por ficar sozinha em vez de ser mal compreendida.

E aqui estou eu doze anos depois, pronta para subir ao palco para o ensaio geral da Bela Adormecida. Fazer de princesa Aurora é o sonho de uma menina e amanhã, na estreia, a minha avó vai ter um lugar na primeira fila. Ela vai ficar comigo alguns dias antes de voltar à sua propriedade e desta vez vai permitir-nos reiniciar os contadores, apagando a falta sentida durante estes poucos meses de separação. Os meus pais também vão lá estar, mas demasiados ressentimentos silenciosos estão a bloquear a nossa relação. O meu investimento na escola de ballet e a minha bolsa de estudos permitiu-me descolar rapidamente e, ao mesmo tempo, conquistar a minha independência. Rapidamente a censura foi lançada aos meus pés e o meu estatuto de filha ingrata cresceu. Eles culparam-me por fazê-los sair da Florida e nunca lhes dar tempo, nunca lhes dar a consideração que eles têm o direito de esperar como pais. Quando eu era mais jovem, disse-lhes que lhes tinha pedido para irem a Nova Iorque, mas nunca lhes tinha pedido para virem comigo. Como se pais decentes pudessem mandar uma criança de dez anos a milhares de quilómetros de distância, sozinhos! As coisas rapidamente pioraram e agora é tarde demais para fazer alguma coisa, pois o ciúme pela minha relação excepcional com a minha avó assumiu proporções cataclísmicas. No fundo, agradeço-lhes por me terem dado tanto, mas não consigo expressar-lhes a minha gratidão e é tarde demais para que compreendam isto. Como resultado, sou apenas uma decepção para eles, apesar do meu incrível sucesso e do sacrifício de um segundo filho, que lhes teria dado mais do que eu.

A minha felicidade seria total se a minha celebridade, em todos os aspectos relativos, concedo-vos, o mundo da dança, não é Hollywood com estrelas de cinema, se não fosse acompanhada pelos inconvenientes de estar na ribalta. A minha fotografia tem aparecido por toda Nova Iorque durante semanas para anunciar o espectáculo que terá lugar no famoso Lincoln Center e, desde então, não posso sair sem ser reconhecida, sem assinar autógrafos e, o que é mais preocupante, sem receber cartas um pouco sinistras. Tento ultrapassar isso, mas a recorrência dessas cartas está a começar a minar o meu moral. No entanto, não tenho tempo para pensar mais nisso.

– Caitlyn, é a tua vez. O teu solo na floresta.

Está ligado. Grande arremesso para me colocar no centro do palco, conversa fiada, sem embriaguez, carrossel, depois pirueta chicoteada. No ballet, é tudo uma questão de ritmo, precisão, delicadeza e músculo. Tenho um corpo esbelto sem o menor esforço, o que me fez ganhar a cobiça de muitos dançarinos numa dieta rigorosa, e me permite estar em total harmonia com a música que me transporta para outro mundo, um mundo límpido no qual me movo sem obstáculos. Pelo contrário, eu estava a evoluir. Por mais que eu tente fechar minha mente aos pensamentos parasitas que me monopolizam, impossíveis de colocar paredes entre os meus sentimentos e a minha expressão artística, eles sempre estiveram intimamente ligados. Eu sei, mesmo antes de dar o meu último salto, que não estava à altura. Sinto-o dentro de mim e os rostos dos outros dançarinos da trupe confirmam-no. Eles parecem tão felizes por me verem falhar. O mundo da dança é um mundo de tubarões, tal como Wall Street. Eles procuram a primeira oportunidade de tomar o meu lugar e chegar à frente do palco.

A Agatha é a mais cruel de todas. Ela é a minha concorrente mais feroz, a mais impiedosa. Qualquer pretexto é bom para me colocar no lugar errado. Ela tem andado zangada comigo desde que entrei para o American Ballet. Antes de eu vir para cá, ela era a maior esperança da empresa. Eu entrei com o meu ar inocente e a minha ignorância da concorrência e ela tornou-se a segunda melhor, a minha substituta em caso de acidente, só que nunca há acidentes A Agatha é oito anos mais velha do que eu. Ela está a viver os seus últimos anos no palco e tornou-se cada vez mais mordaz com o passar do tempo. Acho que ela queria terminar a sua carreira num brilho de glória e ela está ciente de que eu sou a causa deste fracasso. Eu estou no auge da vida quando ela tem um máximo de dez anos de dança pela frente. Não importa o que ela faça, eu estarei sempre lá, ocupando o lugar que ela considera seu por direito, e todo o seu dinheiro nunca poderá fazer nada a esse respeito. Agatha é descendente de uma grande família de aristocratas que possuem muitas propriedades nas zonas altas da cidade de Manhattan. Durante muito tempo ela pensou que seu prestigiado nome sempre lhe abriria todas as portas, mesmo que isso significasse colocar algumas notas sobre a mesa para destravar as fechaduras mais recalcitrantes. A minha vinda aqui pôs um fim às suas ilusões e ela não o aceita. Ela chegou ao ponto de me oferecer uma grande soma de dinheiro para me tirar do palco. Ela obviamente aceitou muito mal a minha recusa. Eu não tenho interesse em dinheiro. De que serve ser—se rico quando se é infeliz? Sem dançar, sinto—me como se estivesse presa no meu próprio corpo. Eu não posso passar sem ele. A minha rival não o entendeu e nunca entenderá. Ela só se preocupa com a fama. Fama e reconhecimento. Como se o ballet fosse um mundo de glamour e cheio de brilho! É sobretudo um mundo de suor e de trabalho árduo.

– Tsss. Caitlyn. Não estás no teu melhor, pois não? Posso encobrir-te se a tua cabeça não estiver lá dentro. O público não vai perder nada no processo, posso assegurar-vos, e temos de pensar primeiro nos nossos fãs.

Como se eu fosse aceitar isso. Prefiro passar por ela sem a ver sequer. O que a irrita ainda mais do que uma partida de luta verbal Г© quando tu a ignoras, e eu compreendi isso muito rapidamente.

– Tu és uma cabra. A pista é minha por direito, e eu vou buscá-la.

Nos sonhos dele, tenho a certeza. Na realidade, estou no local e nГЈo estou prestes a deixГЎ-lo. EstГЎ na hora de ela recuperar o juГ­zo.




CapГ­tulo 2



Caitlyn

O dia da estreia chegou finalmente. Apesar de um recrudescimento de cartas muito desagradáveis para mim, consegui recuperar a vantagem, aproveitando ao máximo o vazio da minha mente e trazendo à tona, através da dança, todas as emoções persistentes em mim. Isto não foi sem dificuldade, pois as cartas tornaram-se cada vez mais ameaçadoras à medida que o espectáculo se aproximava e o último, datado do mesmo dia, não chegou ao teatro como todos os outros, mas directamente em casa, no meu santuário, no meu refúgio, que então parecia menos seguro e reconfortante. O coreógrafo, portanto, achou as minhas expressões um pouco agressivas demais durante o nosso último ensaio e pediu-me para suavizar o mais possível as minhas feições faciais com maquilhagem para esta noite, mas, no geral, ficou satisfeito com a minha actuação.

A minha avó está lá, eu sei disso, consigo sentir os olhos dela em mim. Ela não teve tempo de passar no meu camarim antes do início da apresentação, mas eu sempre sei quando ela está lá. Sinto-me imediatamente mais calma, o que é algo de que realmente preciso. Como qualquer pessoa autista, o barulho e as multidões são difíceis de suportar. Felizmente, a sala está mergulhada na escuridão e o público está silencioso, concentrado na música e os dançarinos movendo-se fluidamente no palco, contando uma das histórias mais famosas das crianças. Eu faço a minha entrada com algumas piruetas no ponto. Fecho os olhos e deixo que a música me leve embora. Sinto a vibração dos sons desde as pontas dos meus dedos até aos dos meus cabelos, ondulando em ritmo, ocupando todo o espaço disponível no palco. O meu coração bate nas notas dos violinos, a minha respiração acelera à medida que os meus passos se sucedem. Sinto no fundo do meu ser: o exílio da Aurore, o seu isolamento no meio do bosque, a alegria de encontrar o dela, a tristeza de os perder assim que regresso, e a esperança de ser finalmente amada. Este ballet é feito para mim. De certa forma, remonta a minha própria vida, desde o momento em que deixei a Florida até ao momento em que encontrei o meu lugar no palco.

Nada de príncipe encantado para mim, mas um grande amor na mesma: o amor à dança. Uma paixão que enche o meu coração de alegria. O tempo passa tão depressa no palco. A um ritmo frenético que eu não consigo perceber. Muito rápido, muito rápido, o ballet acabou. A cortina desce ao aplauso ensurdecedor dos espectadores. Todo este barulho deixa-me com os ombros tensos. Quem me dera poder fugir da multidão, mas é impossível. Eu sou a dançarina principal do espectáculo e os espectadores estão lá principalmente para me verem. Consegui que as felicitações durassem, mas esse foi o único compromisso que me foi dado. Então eu ranger os dentes enquanto toda a equipa se junta a mim no palco e nós cumprimentamos o público todos juntos assim que a cortina de veludo vermelho aparece. A sala está agora iluminada, permitindo-me perceber a vastidão do mundo que fez a viagem, e prefiro não me deter nesta visão que me faz entrar em pânico. Eu procuro a minha avó com os meus olhos. Ela está no seu lugar habitual, na varanda à esquerda do palco, e eu concentro-me no seu rosto. As suas características não mudaram desde a sua última visita há dez meses. É como se o tempo não a influenciasse. O seu cabelo prateado é puxado para cima num carrapito sofisticado e a sua roupa realça a sua cintura fina. Mesmo estando longe, consigo ver o orgulho nos seus olhos e o contorno do seu sorriso. Eu posso ver os meus pais ao lado dela, mas como sempre que eles olham para mim, os seus rostos não expressam nada. Nem alegria nem tristeza. Eles parecem ser indiferentes ao meu desempenho e sucesso. Porque será que eles continuam a vir ver as minhas estreias, já que parecem nunca apreciar o ballet? Felizmente, a cortina finalmente desce e eu posso apagar o meu sorriso falso que me dá cãibras no meu osso zigomático. Toda a equipa salta de alegria e abraça-se, tendo o cuidado de me evitar. Todos eles entenderam que eu não era táctil. Só alguns dançarinos me prestam atenção e acenam com a cabeça para me felicitar.

– Tu és patética. Achas-te muito melhor do que todos os outros que nem sequer te consegues divertir connosco. Parece que a Agatha não esgotou toda a sua energia no palco. Ela está cheia de fel para mim. Prefiro ignorá-la e virar-lhe as costas e ir para o meu camarim pessoal, mas a minha concorrência decidiu o contrário. Ela está na minha frente, a bloquear o meu caminho, e levanta a sua voz para que todos os olhos estejam focados em nós.

– Não tens nada de que te orgulhar. O teu desempenho não foi óptimo. Foi medíocre. Tu tens uma mente preocupada, talvez? Acho que devias retirar-te do espectáculo antes que o estragues para sempre.

– Deixa-a em paz, Agatha. A Caitlyn dançou muito bem hoje à noite. Ela esteve fabulosa, como sempre.

Alex… Meu anjo da guarda, contra todas as probabilidades. A nossa história era curta e desinteressante, mas ele acabou por ser um amigo muito melhor do que um amante para mim. Ele é o único que se adaptou ao meu carácter versátil e óbvia falta de comunicação. Ele rapidamente compreendeu que isso não era mesquinhez da minha parte, mas a minha maneira de ser.

Ele é o defensor dos oprimidos e da causa justa. Acredito que só eu represento a maior parte do seu trabalho como cavaleiro de armadura brilhante, embora não seja o único que goza do seu apoio incondicional. Eu posso ter a mente fechada, mas Agatha não ama ninguém e faz alguns de nós sentir isso. Eu aproveito a intervenção de Alex para entrar silenciosamente no corredor enquanto Agatha grita a sua bílis para quem quiser ouvir.

Os meus colegas estão convencidos de que eu não tenho carácter. Se tivessem feito o esforço de me conhecer, teriam adivinhado a raiva a borbulhar nas minhas veias e a brilhar nos meus olhos. Quando eu era mais jovem, o menor aborrecimento provocava uma violenta birra durante a qual eu batia e quebrava qualquer coisa que estivesse ao meu alcance. Depois comecei a dançar e as minhas birras tornaram-se menos frequentes até desaparecerem. O baile foi o meu escape e não quero retroceder. Prefiro parecer aborrecida e sem sabor do que louca. Quando eu era pequena, o primeiro médico que os meus pais consultaram, acusou-os de abuso. Dos 42 sinais de abuso infantil, eu tive mais da metade, desde lesões físicas a problemas emocionais e comportamentais. Felizmente, a assistente social que foi enviada à minha família para investigação foi treinada em desordem autista, salvando-me de uma colocação de acolhimento que só teria piorado o meu estado psicológico. A ideia de expressar as minhas emoções através de uma actividade partiu dela. Uma bênção. Tornei-me menos violenta, resultando numa diminuição significativa de hematomas e feridas no meu corpo, e a concentração na escola tornou-se mais fácil, uma vez que eu podia soltar-me no final da tarde. Apenas a fuga persistiu. Eu nunca fui embora. Refugiei-me na casa da minha avó até a tempestade passar. Só tive de pensar nela para a ver aparecer no meu espelho. Ela é a única pessoa autorizada a entrar no meu camarim.

– Olá, gata Caitlyn.

Ela vai sempre fazer-me sorrir. Mesmo com o passar dos anos, ela ainda me chama como quando eu era pequena. Pousei a minha lã de algodão e o meu desmaquilhador e dei-lhe um abraço. Aí está. Estou finalmente em casa. Ela só tem que estar lá, não importa onde, para me fazer sentir em paz.

– Olá, avó.

– Deixa-me olhar para ti, Cat.

Ela está a afastar-se e eu estou feliz por cumprir a inspecção dela. Nada lhe escapa, muito menos as olheiras debaixo dos meus olhos, que agora são visíveis sem a maquilhagem que costumava cobri-las.

– Estás linda, querida. É que estás a trabalhar demais e isso mostra. Precisas de descansar.

– Vou pensar nisso, avó.

Ela levanta uma sobrancelha cГ©ptica. Ela conhece-me bem demais.

– Está bem. Vou fazer um esforço enquanto estiveres aqui.

– Está bem. Tenciono passar o máximo de tempo possível contigo. Entretanto, tenho a certeza que temos muito sobre o que falar.

Duvido, mas isso nГЈo importa. Tudo o que quero Г© estar com ela, mesmo que nГЈo digamos nada uma Г  outra. AlГ©m disso, se eu nГЈo tiver nada para falar, talvez ela tenha. Eu sei que ela adora a sua nova casa no meio do nada. E do seu vizinho. Especialmente o seu vizinho. Ela fala dele cada vez que me liga. Acho que ela sonha, secretamente ou nГЈo, em arranjar-me um encontro com ele. A minha avГі ainda tem sonhos para mim. Ela Г© adorГЎvel.

– Estás pronta para ir, Caitlyn? Os teus pais estão à nossa espera para irmos ao restaurante.

Sim, estão. O famoso jantar de família! A que só acontece na minha noite de abertura e que agora é o meu único contacto com os meus progenitores. No entanto, apesar da nossa total falta de contacto durante o resto do ano, não tenho absolutamente nada para lhes dizer, ou melhor, não posso falar com eles, por isso este jantar transforma-se rapidamente numa refeição silenciosa e desconfortável onde a minha avó luta durante duas horas para recriar laços familiares que realmente nunca existiram. Estou tão entusiasmada com isto como com a ideia de deixar o meu lugar como bailarina principal para a Agatha.

– Tu és muito mais expressiva do que pensas, Caitlyn Cat. Não faças essa cara, querida. Esta refeição é importante para a nossa família.

– Podes crer que é.

– Está bem. Significa muito para mim. Eu quero reunir o meu filho e a minha menina.

Aqueles olhos mendigos… Há muito tempo que os quero ter. Teriam mudado a minha vida, com certeza!

– Tu és uma manipuladora, avó. Eu só preciso de me mudar e estou pronta.

– És a melhor menina do mundo.

– Tenho a certeza que sim.

Ela pГЎra mesmo antes de entrar pela porta para me entregar um envelope que foi colocado por baixo. Eu agarro-o com as mГЈos trГ©mulas. Eu comecei a temer o correio.

– E Cat, veste um vestido bonito, por favor. Não quero que a tua mãe se passe quando apareceres de calças de ganga rasgadas como da última vez.

– Ver a cara dela na altura fez com que valesse a pena a viagem. Mesmo assim, não tenho coração para sorrir. Eu desvendo o envelope vermelho-sangue, sabendo antecipadamente o que está lá dentro. Todas as cartas ameaçadoras que recebi eram idênticas a estas. Reconheço imediatamente a caligrafia furiosa que cobre o papel. É grosseiro e violento, tanto nas palavras como no traçado tão seco e enérgico que criou buracos na folha sob a virulência dos gestos.

– Tu não me ouviste. Eu disse-te que eras minha e proibi—te de mostrares o teu rabo num tutu a toda a gente. Devias ter-te afastado quando tiveste oportunidade, em vez de seres uma puta. Agora estou a tomar as coisas nas minhas próprias mãos. Agora só estás a dançar para mim. Vou buscar-te.

A minha respiração é curta e seca e as minhas mãos tremem tanto que a folha cai ao chão. Esta é a primeira vez que o homem escreve a sua intenção de vir até mim, porque ele é um homem, sem dúvida. As primeiras cartas que recebi lembravam-me de um fã que era um pouco possessivo demais. Nas suas cartas, ele escreveu sobre a vida que imaginava para nós como um casal, com muitos comentários obscenos. Com o passar do tempo, as descrições tornaram-se mais cruas e as palavras mais ameaçadoras. Ele passou de "Vou levar-te para todo o lado" para "Vou empalar-te na minha pila e foder-te até gritares de dor". Ele também me culpa pela minha falta de resposta e envolvimento no nosso relacionamento. Que relação? Não conheço ninguém suficientemente distorcido para inventar uma história escaldante comigo. A forma como ele me imagina deixa claro que não nos conhecemos um ao outro. Aparentemente, ele decidiu compensar esse facto. Eu tiro o meu telemóvel da minha bolsa e tento controlar-me novamente. Como as cartas se tornaram uma fonte de ansiedade, eu envio-as para o director do ballet, que contactou a polícia. Infelizmente, por enquanto, os inspectores não têm pistas e, de acordo com eles, não há nada com que se preocupar. Parece que a maioria dos perseguidores anónimos nunca agem de acordo com as suas acusações. E quanto aos outros? Não me deram nenhuma resposta. Parece que estou paranóica. Pronto, estou um pouco paranóica. Digamos apenas que tenho uma tendência natural para extrapolar tudo. Mas está na hora de estas cartas pararem.

– Caitlyn! Foste fabulosa. O feedback do público é muito bom.

– Obrigado, senhor, mas não é por isso que estou a ligar.

Consigo ouvi-lo a suspirar no receptor. Ele também não gosta de mim. Ele atura-me porque eu lhe sou útil. Eu trago-lhe muito dinheiro e ele sente-se obrigado a fazer um esforço comigo.

– O que posso fazer por ti?

– Eu recebi uma nova carta.

– Já falámos sobre isso. Tens de passar por ela e deitá-la fora sem a abrir. Aquele homem nunca o fará.

– Na verdade, tenho uma em casa e outra no meu camarim.

O silГЄncio que se segue tranquiliza-me. Talvez eu finalmente seja levada a sГ©rio.

– Deixa-os à segurança quando saíres do teatro. Vou enviá-los para a polícia.

– Obrigado, senhor.

– De nada, Caitlyn. Aproveita a tua noite. Tu mereceste-o. Vemo-nos amanhã para falar sobre a investigação.

– Está bem. Adeus, Caitlyn.

Estou aliviada por receber esta chamada. Só espero que estas novas cartas ajudem a fazer avançar as coisas. Já tenho medo suficiente do mundo à minha volta sem acrescentar o medo de um psicopata.

Estou a preparar-me com pressa. Não que eu esteja com pressa de encontrar os meus pais, mas mal posso esperar para me livrar destas malditas cartas que não suporto ver no meu toucador. Deixo o teatro após um último olhar no espelho e entrego as cartas para a segurança.




CapГ­tulo 3



Caitlyn

Os meus pais não mudaram um centímetro. O meu pai ainda tem o cabelo grisalho e olhos azuis penetrantes, o mesmo que o meu, e a minha mãe está a puxar o seu rigoroso fato de calças e carrapito sem um fio de cabelo espetado. A forma como olham para mim não é diferente de quando eu era pequena. É como se eu fosse um alienígena que é impossível de entender.

– Obrigado por nos honrares com a tua presença, Caitlyn. Demoraste o teu tempo a juntares—te a nós! Mas sabes que a tua mãe não pode ficar acordada por muito tempo.

A minha mãe tem alguns problemas de joelhos devido a falhas nas articulações, mas só dói com o tempo frio e chuvoso e o céu está incrivelmente limpo esta noite.

– Olá, papá. É incrivelmente suave para a época, não achas? Podes até ver as estrelas.

– Não sejas atrevida, Caitlyn.

Oh, sim, eu sou. Os meus pais sempre estiveram juntos, especialmente contra mim. A minha avГі entra antes do jantar acabar. Mais do que curto, jГЎ que ainda nem sequer estamos no restaurante.

– Vamos comer. Estou esfomeado.

A avó põe o braço debaixo do meu e nós caminhamos ao longo do pavimento em silêncio, a liderar a nossa pequena procissão. Tenho a desagradável sensação de estar a ser observada. É como se um olhar queimasse as minhas costas, causando suores frios ao longo da minha coluna. Posso pensar que isto se deve à presença dos meus pais, no entanto, eles nunca me causaram tal reacção cutânea. Eu tremo quando olho à minha volta, mas o fraco luar e as poucas luzes da rua espalhadas não me permitem ver muito bem os arredores, o que cria no máximo sombras sinistras no escuro.

– Tens frio, querida?

– Não, Avózinha. Oh, estou bem, querida. Mal posso esperar para chegar a casa. Só estou cansada.

Ainda nГЈo contei Г  minha avГі sobre as cartas. Eu nГЈo queria que ela se preocupasse comigo. Ela leva uma vida pacГ­fica e isso nГЈo vai mudar de forma alguma.

– Quando é que me vais visitar à Virgínia? O ar fresco e os amplos espaços abertos fariam-te um grande bem.

– Não tenho dúvidas, avó, mas a temporada está apenas a começar e a Bela Adormecida será apresentada durante várias semanas.

– E depois haverá as selecções para um novo balé, que tu vais ganhar de mãos dadas, claro, depois os ensaios para o novo espectáculo e as actuações novamente. Isso nunca pára, Cat.

Eu mantenho a cabeça baixa, envergonhada por ser uma menina tão má. Essas observações são inteiramente justificadas.

– Lamento desapontar-te, Avózinha.

Ela pГЎra tГЈo abruptamente para me olhar na cara que os meus pais empurram-nos.

– Nunca me vais desapontar, Caitlyn Cat. Tu ouves-me? Estou extremamente orgulhosa de ti e dos teus pais também.

Ela dГЎ-lhes um olhar de apoio que eles nГЈo podem deixar de responder positivamente.

– Claro, Caitlyn. Estamos felizes por ti.

NГЈo Г© exactamente o mesmo que estar orgulhoso, mas eu contentava-me com isso. Eu sei que nГЈo conseguiria obter melhor da parte deles. Estamos a andar devagar outra vez.

– Só quero mostrar-te outra coisa para além de dançar. Além disso, gostaria que conhecesses o Baraqiel.

– O teu vizinho?

Ela assentiu e acenou com a cabeça.

– Nunca me disseste o primeiro nome dele. É muito estranho.

– Não o julgues sem o conheceres. Ele é um anjo, querida.

Claro que sim. A minha avГі ama toda a gente indiscriminadamente de qualquer maneira. A conversa de boa Г­ndole poderia ter terminado ali, mas obviamente a minha mГЈe teve de se envolver assim que se instalou Г  mesa.

– Seja como for, sabes que a Caitlyn não tem tempo para o amor, madrasta. Ela teria de estar interessada noutra pessoa que não ela para que isso acontecesse, e não vai acontecer tão cedo.

A minha mãe está a ficar cada vez mais amarga. Pergunto-me porque é que ela se obriga a vir ter comigo quando claramente não o quer fazer. A minha avó provavelmente tem algo a ver com isso. Ela pode ser muito persuasiva. Eu gostaria de poder dizer à minha família que os amo, mas isso exigiria que os meus pais me aceitassem como eu sou e eles nunca foram capazes de fazer isso. Agora é tarde demais e o meu silêncio é sempre tomado como rejeição. Na verdade, é mais uma aceitação da situação. Como sempre, a minha avó serve como um amortecedor nas nossas relações conflituosas. Acredito que sem ela, não haveria nenhuma interacção entre os meus pais e eu.

– Vamos pedir. Está a ficar tarde para uma velhota como eu.

Eu escolho os meus pratos, mas sinto-me oprimido pelo silГЄncio da nossa mesa e pelo burburinho das conversas dos outros clientes. A minha avГі conhece-me bem e aperta-me a mГЈo debaixo da mesa.

– Vai em frente, tu tens tempo.

Eu me apresso, ignorando a minha mãe, que já está a começar a reclamar. O ar lá fora está a fazer-me muito bem. A brisa suave acaricia as minhas pernas nuas e torna as minhas faces rosadas.

Aproveito a calma da noite para dar alguns passos antes de me encostar a uma parede e olhar para o céu. Não há uma única nuvem e as estrelas brilham sobre este soberbo tapete de veludo preto. Eu poderia ficar ali durante horas para deixar esta paz invadir a minha alma atormentada. Quando eu era pequena, sonhava em voar e dançar numa nuvem.

No entanto, um som de passos à minha esquerda fez-me saltar e perceber onde eu estava. Eu sou uma mulher solitária num beco escuro em Nova Iorque. Eu endireito-me, com um desconforto a agarrar-me as entranhas. Volto para trás para chegar à porta do restaurante. Eu não fui muito longe, e mesmo assim a distância de repente parece imensa. Sinto que alguém está a seguir-me. Tenho a certeza disso. Passos. Respiração forte. Não gosto disso e uma ansiedade chata aperta-me o estômago, enquanto o meu coração bate de forma selvagem. Acelero o ritmo, aliviado para finalmente alcançar o meu objectivo, e agradeço ao porteiro que toma a liderança deixando-me passar sem precisar de abrandar. Abrigado pelas portas de vidro, eu viro-me, mas vejo apenas a rua deserta e silenciosa. Não há ninguém no horizonte. O meu coração retoma um ritmo mais calmo, mas a minha cabeça permanece presa no modo de ansiedade. As emoções misturam-se dentro de mim, ameaçando provocar uma crise autista como eu não tinha há muito tempo. Eu refugio-me num dos cubículos da casa de banho, trancada, e enrolo-me em mim mesma, no chão, a balançar para trás e para a frente. Eu preciso de dançar para expressar o medo que me consome, só que, no futuro imediato, é impossível. Por isso, tento reorientar-me e limpar a minha mente. Mais fácil falar do que fazer!

Depois clicam no azulejo em frente Г  minha porta. Eu instintivamente recuo, mas estou bloqueada pela tigela nas minhas costas.

– Caitlyn Cat? Sentes-te bem, Caitlyn? Eu vi-te no corredor, mas não voltaste para a mesa.

Ouvir a voz da avó faz-me sentir melhor. Eu escolho focar-me nisso, nela e na sua voz, contando na minha cabeça. Inspira, um, dois, três, quatro. Expirar, um, dois, três, quatro. Repito o exercício cinco vezes seguidas. A minha avó, depois de ir e vir ao longo de todas as cabines, pára à porta da minha.

– Abre, Cat. Tenho a certeza que estás aí.

Eu estendo a mГЈo para abrir a fechadura e a avГі abre-a suavemente. Os olhos dela parecem tristes quando ela os pГµe em mim. Ela se agacha na minha frente e acaricia o meu cabelo, como sempre faz quando se sente atormentada.

– Qual é o problema, minha querida?

Eu não quero falar sobre isso. Não agora, e especialmente não aqui. Eu vou contar-lhe tudo. Eu preciso dela. Mas eu fá-lo-ia em casa, na segurança da minha casa. Se eu ainda estiver a salvo lá, o que já não tenho a certeza.

– Os teus pais adoram-te, Caitlyn Cat. Eles simplesmente não sabem como lidar contigo. Eles simplesmente não te entendem.

– Eu sei, avózinha. Está tudo bem.

Prefiro que ela culpe a minha reacção àquela refeição desconfortável, pelo menos por agora.

– Vá lá, anda minha querida. Não fiques no chão, vais apanhar frio naqueles azulejos congelados.

Ela estГЎ a ajudar-me a levantar e a arranjar o fundo do meu vestido, que estГЎ ligeiramente encolhido.

– És demasiado velha para mostrar as tuas cuecas, minha querida.

O reflexo dela pГµe um sorriso no meu rosto e nГіs nos unimos Г  nossa mesa de mГЈos dadas.

– Finalmente estás de volta. A nossa comida tem sido servida há séculos e em breve estará fria. O que estavas a fazer, Caitlyn? A dar autógrafos ?

Eu poderia rir—me disso se não tivesse vontade de chorar. A minha mãe está convencida que eu escolhi a fama em vez da vida familiar. Como ela está errada! O que eu escolhi foi normalidade, liberdade. No final, optei por libertar a minha mente de todos os sentimentos que me bombardeiam o tempo todo para viver uma vida banal, mesmo que a maioria das pessoas não considere isso tão banal. É verdade que uma foto minha em ballet está em metade dos autocarros da cidade e que eu apareço regularmente em revistas especializadas. No entanto, tudo o que vejo é eu a fazer o que amo. E até há pouco tempo, consegui ignorar todo o feno que me rodeava.

– Podias ao menos sentar-te para que pudéssemos finalmente começar!

– Desculpe. Claro.

Na verdade, como sempre, eu perdi-me em pensamentos e congelei perto da mesa. Assim, sento-me na minha cadeira e a refeição desenrola—se como todas as outras, num silêncio quase religioso, apenas intercalado com frases da minha avó que tenta desesperadamente renovar o diálogo entre todos nós.

– Talvez pudéssemos visitar a cidade juntos amanhã.

– De jeito nenhum! Certamente a nossa estrela nacional tem coisas melhores para fazer do que passar tempo connosco.

Definitivamente. A minha mГЈe nunca me perdoarГЎ por ser o que sou: independente. Quando me foi diagnosticado um distГєrbio autista, ela ficou chateada porque as minhas birras eram incontrolГЎveis, mas tambГ©m pensou que eu precisaria sempre dela ao meu lado para passar pela vida e ela gostou dessa ideia. Ela pensou que eu seria a filhinha da mamГЈ dela para sempre. O futuro provou que ela estava errada.

Prefiro responder Г  avГі para nГЈo ter de lutar com a minha mГЈe.

– Eu não vou trabalhar amanhã. Foi-nos dado um dia de folga. Só tenho de praticar pela manhã e depois sou toda sua.

– Um verdadeiro milagre! Isso não pode acontecer muitas vezes, uma vez que nem sequer tens tempo para nos ligar!

A avГі intervГ©m, como sempre.

– Adorava visitar a Ilha Ellis. Nunca lá estivemos antes.

– Eu também nunca lá estive. Estar preso num ferry nunca me emocionou mais do que isso, mas fugir da maçã grande edas minhas preocupações com a avó mesmo por algumas horas é uma ideia muito atraente.

– É uma óptima ideia, avó. Vamos lá depois do almoço. Vou arranjar os bilhetes antes do meu ensaio.

– E tu nem sequer nos perguntas se nos queremos juntar a ti, claro!

Estou a engolir a bola que está presa na minha garganta. A minha mãe não me vai poupar nada esta noite. Parece que está na hora de acertar as nossas contas. Infelizmente, não estou em condições de a suportar e prefiro ser dócil ao tomá-la sobre mim mesmo que isso signifique partir o apoio do braço da minha cadeira apertando os dedos nela.

– Pai, mãe, gostariam de vir connosco para Ellis Island amanhã?

– Bem, acontece que não podemos. Vamos trabalhar amanhã. Não estamos disponíveis quando a senhora decide dar-nos um pouco de tempo!

Lá se vai isso! E depois vão culpar-me por não fazer um esforço. Eu mordo a língua com tanta força que não grito e sai sangue da minha boca. Mal posso esperar pelo fim desta refeição para finalmente poder ir para casa e livrar-me do meu excesso de tensão. Eu montei uma sala inteira para esse fim apenas, com um espelho e uma travessa na parede. Uma mini sala de dança pessoal que me servirá bem se eu quiser poder ter uma boa noite de sono.

Finalmente em casa! O meu rendimento confortável permite-me ter este grande t4 no coração de Nova Iorque, perto do Teatro de Ballet Americano, sem ter de utilizar transportes públicos. Um verdadeiro luxo para mim. Ando por todo o lado e isso fica-me muito bem. Eu destranco a porta e aceno à minha avó para ir à minha frente. Mesmo estando em boa forma para a idade dela, ainda me sinto cansada e tenho a certeza que ela está ansiosa por ir para o quarto. Porque ela tem o quarto dela em minha casa. Eu nunca convido ninguém além dela, então o terceiro quarto foi arranjado de acordo com seus gostos e desejos.

– Vê Caitlyn Cat. Uma carta foi passada por baixo da tua porta. Tens um admirador secreto que não me tenhas contado?




CapГ­tulo 4



Caitlyn

Sinto todas as cores a deixarem-me a cara, o meu coração congela no peito e as minhas mãos ficam pegajosas. Não tenho de olhar para o envelope que ela tem nas mãos para saber o que é e de quem é. Três num dia é a primeira vez que eu teria passado sem ele.

– Caitlyn? Algum problema, Caitlyn?

– Não. Não, não há problema nenhum.

As minhas mГЈos tremem tanto como a minha voz quando apanho o envelope tГЈo vermelho como o sangue nas minhas veias, contradizendo o que eu disse.

– Eu conheço-te melhor do que tu própria. O que acontece no final? E não me respondas a nada!

Perante a minha falta de resposta e de reacção, a minha avó assume a liderança. Ela agarra o envelope, abre-o e lê-o em voz alta com um franzir de sobrancelhas.

– Prepara-te, estarei aí em breve. Estarei aí em breve.

Ela lГЄ a carta vГЎrias vezes em silГЄncio enquanto eu caio contra a porta depois de a fechar. Eu fecho e desbloqueio a fechadura vГЎrias vezes seguidas, a minha pancada ressurge sob pressГЈo.

– O que significa isso, Caitlyn? Não há nada de romântico nisso, pois não?

Estou a abanar a cabeça para a esquerda e para a direita, à beira de um esgotamento nervoso. Começo a bater com a nuca contra a madeira dura atrás de mim, na esperança de tirar dela todos os pensamentos sombrios e ansiedades. Um barulho seco entoa no meu apartamento.

– Não, Caitlyn. Não é a resposta.

Ela coloca a sua mão atrás do meu pescoço para evitar que eu me magoe e conduz-me manu militari para o meu salão de dança, puxando-me pelo braço.

– Vou dar-te meia hora para te acalmares. Depois disso, quero que tu e eu tenhamos uma conversa séria. Percebeste-me?

Eu aceno com a cabeça antes de começar a música e não desperdiço um segundo. Tenho tido esta sala completamente à prova de som para a paz e sossego dos meus vizinhos em casos como este, onde a necessidade de desabafar seria sentida a uma hora tardia. Duvido que eles apreciassem ouvir música e os sons dos meus saltos às 23 horas passadas. O ritmo é rápido, poderoso, raciocinando dentro de mim como tambores. É exactamente o que eu preciso. Eu salto, giro e improviso numa série de movimentos para expressar a raiva e a angústia que estas cartas trazem dentro de mim. Não os suporto mais.

E eu nГЈo suporto o facto de eles estarem a entrar em minha casa agora.

NГЈo percebo quanto tempo passa atГ© que a avГі desligue o sistema de som.

– É muito violento, Cat.

Nem reparei que a minha avГі ficou comigo em vez de ir descansar e nГЈo duvido nem por um momento que ela esteja a falar da forma como eu me mexo.

– Esta não é a primeira carta como esta que recebeste, pois não?

Agarro numa das toalhas limpas que deixo sempre na sala para limpar a cara. Isto dá—me tempo para retomar uma respiração mais regular e abrandar o meu ritmo cardíaco.

– Não, não foi. Tenho-as recebido desde que fui escolhida como a Bela Adormecida. Elas se tornaram cada vez mais frequentes à medida que nos aproximamos da primeira apresentação do espectáculo, e esta é a terceira do dia.

Ela vem para me abraçar perto dela para me confortar.

– Oh. Minha Caitlyn Cat. Devias ter-me falado delas. Eu teria vindo para te apoiar muito mais cedo se soubesse.

– Eu sei, avó. Só que tu tens a tua vida e eu sou uma adulta. Eu tenho que me defender. Além disso, afinal são apenas cartas. Tu sabes que eu tenho dificuldade em lidar com dados desconhecidos e eu claramente não entendo o objectivo de enviar este tipo de correio.

– Assumir a responsabilidade não significa te isolares, minha querida, e estas cartas não são triviais. Já avisaste a polícia?

– O director do ballet fez por mim desde que as cartas chegaram ao teatro até agora, mas a investigação está num impasse. Eles não têm pistas e como nunca fui fisicamente ameaçada, não estão a levar o caso a sério. Eles acham que estou muito preocupada com nada.

– Oh, estou a ver. Estou a ver. Só que as cartas estão agora a chegar directamente à tua casa. Bem, isso muda tudo.

– Só tem sido assim desde esta manhã. O director notificará os investigadores sobre este desenvolvimento.

– Óptimo. Até este assunto estar resolvido, vou ficar em tua casa e certificar—me de que estás a salvo.

– Avó…

– Não vale a pena discutir sobre isso. És a minha menina e ninguém te vai ameaçar, mesmo que seja só para te assustar.

– Pode demorar meses até a polícia prender alguém.

– Bem, digamos que estou a tirar umas longas férias. Estou reformada, Cat, tenho muito tempo e o Baraqiel pode tomar conta da minha casa enquanto eu estiver fora. Vou ligar-lhe agora mesmo e perguntar-lhe.

Não vale a pena desperdiçar o meu fôlego a tentar fazê-la mudar de ideias. A minha avó é mais teimosa que uma mula e, no fundo, sentir-me-ia melhor se tivesse alguém comigo durante algum tempo. De qualquer forma, ela já tirou o telemóvel e marcou o número.

– Olá, Baraqiel. Desculpa incomodar-te tão tarde, mas conheço-te, tenho a certeza que não estavas a dormir.

– …

– Vou ter de prolongar a minha estadia em Nova Iorque. Podes tomar conta da minha casa enquanto eu estiver fora?

– …

– Sim, está tudo bem. Apenas algumas pontas soltas para amarrar.

– …

– Obrigado. És um anjo, mas tu sabes disso. Entrarei em contacto assim que souber quando voltar. Vemo-nos nessa altura.

A minha avГі tem um sorriso na cara quando desliga.

– Tu pareces gostar muito do teu vizinho.

– Eu disse-te, ele é um anjo.

– Adoro-te, avó, mas sabes que não sou crente, por isso os anjos e tudo o que vai com eles…

Ela levou-me várias vezes à igreja quando eu era criança, depois de cada uma das minhas violentas crises nervosas, para que eu encontrasse apoio fora da sua casa. Ela suspeitava que eu acabaria por voar e queria que eu tivesse sempre alguém a quem recorrer, onde quer que eu estivesse. Infelizmente, o lado algo rígido e reverencial do lugar não me convinha e eu não me encaixava. A minha avó deu-me uma palmadinha na mão com um ar de compreensão.

Ainda Г©s jovem, Caitlyn Cat. Tu ainda nГЈo viste tudo. Podes tirar isso da minha longa experiГЄncia. Por falar nisso, vou para a cama. Estou exausta. Boa noite, querida.




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